Rodrigo Ghedin está digitando|

AHSD

No final de 2021, minha psicóloga disse que via traços de autismo em mim.

Até aquele momento, jamais me ocorrera essa hipótese. Achava-me apenas introspectivo e um pouco diferente da maioria das pessoas.

Não fiquei ofendido nem desesperado que pudesse ser autista. Na verdade, enquanto pesquisava o assunto, muitos episódios da minha vida foram ressignificados, no melhor estilo “O sexto sentido” — a reviravolta do final, não a parte sobrenatural.

Tudo isso me deixou curioso, mas não a ponto de me submeter à avaliação. Em muitos momentos, até esquecia o assunto. Nunca por completo. Quando menos esperava, me vinha à cabeça: “Será o autismo?”

Fiz a avaliação apenas no início de 2024, por motivos que não quero expor. (Talvez já esteja me expondo demais com este relato!)

Com base nos testes e entrevistas realizados ao longo de quase dois meses, a neuropsicóloga concluiu que não sou autista.

A negativa foi um banho de água fria. Uma água que virou gelo quando li, na sequência, que sou alguém com “altas habilidades/super dotação” (AHSD), outra hipótese em que nunca havia pensado e que, para ser honesto, soa bem mais improvável que a do autismo.

***

Ainda não sei muito bem o que “AHSD” significa, nem por que eu sou assim. Só sei que não tenho nada de genial, ao contrário do que o estereótipo associado ao termo sugere. Reli algumas vezes o laudo e o que se destaca é um suposto raciocínio mais rápido que a média.

Li incontáveis matérias, ouvi podcasts; fiquei com a sensação de que, mesmo entre especialistas, não existe consenso. Os conceitos são tão flexíveis, às vezes até contraditórios, que ainda não sei explicar o que me faz diferente.

Fosse autista, acho que seria mais fácil justificar às pessoas as dificuldades que sinto em socializar — em conhecer pessoas, jogar conversa fora, cultivar vínculos e demonstrar afeto — e a minha maneira meio… excêntrica de compreender e lidar com o mundo.

“Desculpe pelo sumiço, sou autista.” Todo mundo entenderia. Usar a carta das AHSD, por outro lado, beira a arrogância. “Desculpe pelo sumiço, sou super dotado”? Péssimo.

A neuropsicóloga explicou que as dificuldades que me levaram à investigação também podem ser explicadas pelas AHSD. A despeito da confusão conceitual com que me deparei, ressignifiquei episódios extras da minha vida à luz do inesperado diagnóstico, que se somaram aos do autista que pensava pudesse ser.

A escola, por exemplo. Sempre fui bom aluno pelo critério das notas bimestrais, mas um que estudava apenas o suficiente para superar a média com folga, ou seja, aquém do necessário para aprender. A facilidade de atingir o que encarava como objetivo, sabotando o que deveria sê-lo, deixou uma sequela no meu funcionamento cognitivo.

Ou a facilidade com o texto escrito, que encontrou terreno fértil para florescer na internet do início dos anos 2000, quando a transmissão de vídeo variava entre o lento e o impossível.

Sinto-me tão à vontade escrevendo que fiz uma carreira repleta de altos e baixos apegado a essa habilidade, à margem de trilhas convencionais (e, acho, mais frutíferas), ao mesmo tempo em que desviava de obstáculos úteis ao crescimento que, de outra forma, teria confrontado.

Talvez esses atalhos tenham definhado alguma parte do meu sistema reativo, ou contribuído para uma preguiça quase crônica misturada com medo de me desafiar. Ou talvez nada disso tenha a ver com minhas questões agora, adulto. Não sei, de verdade.

De qualquer modo, encaro a internet com ambivalência, uma bênção e uma maldição, e anseio por experiências que, quando me estão ao alcance, negligencio. Quem entende? Alguém me entende?

Não é por acaso que estou te contando isso assim, em um texto enviado por e-mail.

***

Já faz meses que peguei o laudo e ainda estou tentando dar algum sentido ao diagnóstico tardio, perto dos 40 anos. Até agora, só extraí sentimentos negativos de um suposto potencial desperdiçado, de muitos “e se…” agora repensados sob novos ângulos, do que poderia ter sido e não fui por uma ignorância percebida tarde demais.

17/8/2024
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