"Você não é tão esperto quanto pensa"

O legal de ser criança é não ter limites para a imaginação. Todas elas sonham com as coisas mais improváveis, todas anseiam por futuros legais e divertidos e, mesmo ignorando os problemas, dificuldades e até as partes chatas da vida, nenhum pequeno fica reticente ao dizer que quer ser advogado, médico, jogador de futebol ou astronauta.

Ao passar à adolescência, os sonhos ganham contornos globalizados. Não basta ter um emprego legal que dê grana suficiente para comprar todos os brinquedos e doces da face da Terra. Temos que mudar o mundo, melhorá-lo, resolver as questões universais que, ora ora, até agora ninguém conseguiu resolver. Mas eu sim, eu conseguirei — pensa o mancebo. Esse senso de superioridade quase inocente também é cativante. Para mim, mais do que a imaginação sem limites das crianças. Uma pena ele enfraquecer e, em muitos casos, se perder na transição para a vida adulta.

O mais curioso é que tudo isso acontece dentro da nossa cabeça. O que rola do lado de fora influencia muito, sim, mas o processamento e as conclusões são frutos do trabalho das sinapses, dos impulsos elétricos que fazem cada um de nós respirar, andar, pensar. E, ao final de tudo, a ideia de que somos pessoas singulares, extraordinárias, únicas, se dilui. Em um contexto e extensão menores, é a mesma desilusão que em intervalos regulares e quase nunca notados acomete o hipster. Quando a banda underground que só ele conhece e que não se vende ao sistema começa a tocar na rádio e a ir ao Faustão, ela deixa de ser exclusiva, ela deixa de ser especial. A parte surpreendente é que ninguém é especial, somos todos muito mais iguais do que imaginamos, ainda mais iguais do que as ideias de igualdade que campanhas contra os diversos preconceitos terríveis que ainda assolam a sociedade “moderna” tentam enfiar na cabeça dos ignorantes.

Essa igualdade velada pode ser bem vista nessas tirinhas de memes bobas que aparecem o dia todo no Facebook. Note como em algumas delas que descrevem comportamentos íntimos e apresentados como “esquisitos”, o nível de identificação é grande. Não raro aparecem comentários do tipo “achei que só eu fazia isso”. Pois é, todos os outros que fazem a mesma coisa também achavam o mesmo. É a ruptura da individualização.

Acho que todos nós aprendemos isso na prática e é sempre meio desconcertante quando acontece. No meu caso, há uns oito ou dez anos, foi descobrir que outras pessoas escrevem melhor do que eu. Não só; foi descobrir que outras muitas pessoas escrevem muito melhor do que eu.

A escrita sempre foi o meu refúgio, a resposta pronta para a pergunta “o que você sabe fazer?” Em exercícios mentais descompromissados de “e se…?” onde me pergunto que outra coisa faria se não escrevesse, esbarro em uma parede metafórica enorme com um “NADA” escrito em letras garrafais. (Também tenho alguns pesadelos com LER/DORT e outros problemas drásticos com as minhas mãos, extensão natural e essencial da escrita, mas essa é outra história.) É sempre um baque, mas um baque importante que libera uma dose bem-vinda de humildade e, mais importante, nos tira de uma zona de conforto frágil, quiçá inexistente. Você gosta de escrever? Legal, então escreva, leia, estude, não fique parado. Se assim já tem tanta gente que é melhor nisso, ficar estagnado só piorará as coisas.

O livro Você não é tão esperto quanto pensa, de David McRaney, é uma dose cavalar dessa adequação ao mundo. São, como o título original em inglês descreve, 48 características do ser humano esmiuçadas e embasadas pela psicologia moderna que nos aproxima uns dos outros e nos tornam… humanos. Mesmo sem conhecê-las, todos as praticamos; das mais simples e conhecidas, como a procrastinação e a lealdade a marcas, até outras que, perguntadas diretamente, seriam negadas pela maioria, como o efeito holofote, a conformidade ou o pensamento grupal.

Se por um lado as características menos óbvias são várias (e, por vezes, estarrecedoras) surpresas, por outro entender a natureza, o funcionamento de atitudes que nos passam batidas no dia a dia não deixa de ser menos interessante. E chega a dar algum conforto saber que não, não sou só eu que deixo as coisas para a última hora; a procrastinação tem raízes históricas e uma explicação psicológica bem plausível — embora, como nos dizem o chefe e o professor, não seja desculpa para atrasos.

Uma ideia do todo que me chamou muito a atenção é a de como a nossa mente é falha e, ao mesmo tempo, como ela supre um punhado de lacunas para dar algum sentido ao raciocínio e, em âmbito maior, à nossa própria existência. “Você ignora o quanto é ignorante,” escreve McRaney a certa altura.

Entre vários exemplos e características que evidenciam essa deficiência do nosso cérebro (ou virtude, dependendo do ponto de vista), é citada a incapacidade dele em gravar memórias. Pense em um filme ao qual você assistiu ontem e tente recontá-lo nos mínimos detalhes. Se não somos capazes de lembrar totalmente de algo que aconteceu há tão pouco tempo, como conseguimos contar histórias da adolescência, dos porres, das festas, dos eventos marcantes das nossas vidas? A resposta é que não conseguimos. Nosso cérebro preenche os espaços vazios com coisas que, na prática, talvez nem tenham acontecido e, sem sabermos desse truque, nos agarramos a essas narrativas e acreditamos piamente no que contamos. Nosso inconsciente nos engana e somos todos mentirosos, veja você.

Cada capítulo é uma desilusão do ser humano. Religião, misticismo, coincidências, sentimentos e emoções, reações que de fora parecem estúpidas, mas que nas quais a maioria incorre quando se vê na mesma situação, basicamente qualquer coisa que você pensa e como você pensa, tudo isso é desconstruído pelo livro, que sempre recorre a estudos e aqueles testes que a psicologia adora fazer para pegar os sujeitos analisados no pulo. É uma leitura bem interessante que o leva a concluir, por si mesmo e por mais dolorido que seja, que você não é tão esperto. Se serve de consolo, ninguém é.

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